domingo, 11 de abril de 2010

Precisamos falar sobre Kevin




“Uma análise contemporânea da produção em série de assassinos mirins”, “uma análise do grande trauma da violência infanto-juvenil nos EUA”, “o drama de uma mãe que precisa conviver com o fato do filho ser psicopata e homicida.”, “o livro narra, sob o olhar da mãe, a saga de um garoto assassino”.

Fiquei impressionada com o número de resenhas críticas que resumem este livro a tudo, menos ao seu assunto principal, que não é nenhum dos mencionados acima, mas sim um excepcionalmente honesto e corajoso questionamento sobre a maternidade, sobre a ausência do desejo de se tornar mãe, sobre os receios de assumir responsabilidade por uma outra vida, sobre o medo de falhar, o medo da vida mudar completamente, de perder sua própria identidade para sempre e, acima de tudo, de não saber o que fazer com este questionamento.

“Precisamos falar sobre Kevin” é um livro que concretiza, através da história do relacionamento de Eva (mãe) e Kevin (o filho), um dos piores pesadelos de uma mãe: o de um dia se sentir severamente culpada pela personalidade doentia e pelo destino cruel de um filho que ela não desejou parir.

O filho de Eva Khatchadourian, de 15 anos, matou sete estudantes, um funcionário de uma cafeteria e um professor da sua escola, num bairro de classe média, em Nova York. Com Kevin agora encarcerado num centro de detenção juvenil, Eva passa a visitá-lo e a remoer os seus sentimentos sobre maternidade e o terrível crime cometido por Kevin.

Esse livro não é uma análise contemporânea de nenhuma fábrica de assassinos mirins e muito menos a saga de um assassino sobre o olhar da mãe. Eva não narra nada sobre o ponto de vista de Kevin. Ele é seu filho, mas ela mal o conhece. Ela criou barreiras entre os dois antes mesmo dele nascer e ele deu continuidade a cada uma delas. O que ela narra é a sua própria angústia. A angústia de uma mãe que não queria ter se tornado mãe, mas que o fez porque o marido queria muito tornar-se pai, e que, 15 anos depois, precisa encarar o fato de que o pai que queria muito ter um filho se provou um pai ausente, e que o filho que ela não desejava gerar se transformou num assassino. Desesperada, Eva recorre a uma catarse em forma de cartas escritas ao ex-marido, numa tentativa de descobrir se ela é culpada pelo filho ter se tornado quem se tornou.

Eva recorre a um doloroso processo de auto-análise e cava fundo o passado e o presente, revelando de forma honesta e brutal os seus conceitos, impressões e sensações sobre tornar-se mãe, sobre a vida a dois, e depois a três, sobre os desafios de tentar amar e de ter que criar Kevin, apesar de tudo o que sente por ele e de como se sente em relação a tudo o que mudou em sua volta desde o nascimento dele. Eva tenta descobrir o que fazer com o sentimento de culpa, mesmo não sabendo até que ponto toda a maldade que ela vê em Kevin é algo natural, que nasceu com ele; ou algo pelo qual ela é diretamente responsável.

O fato de este livro ter vendido mais de 1 milhão de cópias ao redor do mundo, ter sido traduzido em mais de 21 línguas, ganho o prêmio Orange Prize em 2005 e ter virado filme em 2011, não o protegeu de ser mal interpretado até mesmo por aqueles que leram todas as páginas do livro.

Isso prova o quanto a insensibilidade em relação ao questionamento sobre a maternidade ainda é latente. E é exatamente por isso que ele é necessário e que precisamos abrir espaço para que este seja feito tanto individual como coletivamente.

Numa entrevista ao World Book Club em setembro de 2009 a autora, Lionel Shriver, responde à seguinte pergunta feita pela apresentadora do programa:

BBC - Foram os massacres nas escolas que aconteceram na vida real e que foram executados por crianças, como os que aconteceram aqui nos Estados Unidos, e mais recentemente na Alemanha, que lhe inspiraram a escrever esse livro ou você começou a escrevê-lo por uma outra razão?

Lionel - Eu tive a idéia de tratar desse assunto ao ler os jornais. Este foi o meu ponto de partida, mas o que me surpreendeu quando comecei a trabalhar no projeto foi que até aquele momento eu achava que este seria o meu assunto principal e o que acabou acontecendo foi que descobri que não era bem isso, já que o assunto de verdade é a maternidade. Quando comecei a escrever o livro eu tinha quarenta e poucos anos e já estava no limite da possibilidade de gerar um filho. Até agora ainda não tive nenhum. Naquele época eu ainda poderia ter tido um filho se tivesse decidido fazê-lo. Mas, aquele foi o momento em que eu mais me questionei sobre essa decisão. Então acredito que toda a minha ansiedade sobre a maternidade e todas as questões em minha mente como: “do que é que eu tenho medo?” acabaram entrando no manuscrito imediatamente e se tornaram o assunto principal. Acho que é por isso que esse livro conquistou o interesse de tantas pessoas e atraiu uma audiência maior (se comparado com os meus outros livros). Não é que elas queiram ler mais um livro sobre os tiroteios executados por crianças, o que acontece é que existem muitas mães por aí, e muitos pais (já que este livro não é apenas para mães...) e muitos escritores de ficção que já passaram do momento em que decidiram ser pais (ou não) então acabam não tratando tanto desse assunto em seus livros; da dificuldade, de se tornar uma mãe ou um pai. Ao passo que eu estava muito consciente dessa dificuldade de criar uma criança enquanto escrevia o livro, e desde que ele foi lançado tenho falado com uma série de pais que manisfestaram satisfação pelo fato de que parte dessa dificuldade foi registrada em um livro de ficção.

Precisamos falar sobre o Kevin
Editora: Intrínseca
Autor: LIONEL SHRIVER
ISBN: 9788598078267
Ano: 2007
Edição: 1
Número de páginas: 464

Nicole Rodrigues

6 comentários:

  1. Esse livro é maravilhoso.

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  2. Este livro mostra toda a riqueza de uma literatura rica e cheia de duvidas de mulheres da nova era. EXCELENTE!

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  3. Acho uma análise tão honesta quanto a obra. Sabe, tenho acompanhado, ainda que bem superficialmente, a recepção desse livro. Acho que estamos em um momento de exaltação a catarse. Sim, isso mesmo. Os livros são feitos com boas narrativas e bons temas e que recorrem ao sofrimento ou mesmo a sentimentos menos leves. E os leitores modernos infelizmente ficam submersos a essa sensação. Compram o livro e esperam o filme. Nao escavamos as obras.
    Acredito eu que o assassinato em série feito por Kevin nao é a grande questão mesmo. Se observarmos a relação entre mãe e filho feita por Eva, encaramos um conflito que mexe com um tabu, a maternidade. É claro que toda revisão é feita pela mãe sobre a ótica da quinta-feira. Entretanto, o exterminador Kevin liquidou emocionalmente, muito antes da escola, uma família e uma pretensa mãe.
    Se o leitor deixar de se deter no sofrimento de Eva, passará para um estágio muito mais cruel que
    o desafio a moral feito por Kevin.
    Só mais uma coisa, observou o nome de Eva e sua relação bíblica?

    Bruno.

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  4. Olá Bruno,

    Que bacana ter um mais novo "bendito ao fruto entre as mulheres" :-) Seja bem-vindo.

    Gostei bastante do seu comentário e mais ainda da sua observação final. Eu não tinha notado a relação biblíca! Obrigada pela dica!

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  5. Realmente, o que mais me impressionou no livro foi a relação entre Eva e Kevin, e não o assassinato em si.

    Acho que a razão de Kevin ter se tornado o que é foi realmente sua mãe, mas ela não é culpada. É impossível não ligar a origem da apatia dele com a forma como foi gerado depois de nascer a irmã dele.

    Um dos melhores livros que eu já li, principalmente por ser contemporâneo e surpreender por não estar preso ao massacre em si. O livro todo é sobre uma batalha travada entre mãe e filho, uma batalha que de certa forma termina em rendição mútua. Chocante, sensível, eu simplesmente adorei.

    Agora, estou ansiosa pelo filme. Não posso evitar, já que vou poder experimentar as sensações do livro novamente haha


    Ótima resenha, a melhor até agora.

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