Uma leitura do livro: As Mulheres de Tijucopapo de Marilene Felinto
Autora: Lélia Almeida
O romance As Mulheres de Tijucopapo de Marilene Felinto, de 1980 é representante típico do fenômeno editorial que se dá a partir dos anos 80, em âmbito internacional, qual seja, um verdadeiro boom de publicações de autoria feminina, e se insere também, no que foi chamado por algumas críticas, de romances de maternidade.
A necessidade da construção de uma genealogia feminina, representada amplamente nos romances contemporâneos, de autoria feminina, e que se dá através da recorrência de uma narrativa em que se conta a história de uma mãe, de uma filha, de uma avó ou de uma neta, ou mesmo entre irmãs, tem como objetivo que a protagonista descubra a sua própria identidade. Este processo acontece na medida em que a protagonista, ao conectar-se com a sua própria história, através do reconhecimento de suas semelhanças e diferenças com a história de outras mulheres de sua família, conecta-se ao seu próprio corpo, seus desejos e sua necessidade de expressão. Se tornam, desta maneira, todas elas, herdeiras de uma genealogia, criando entre as diferentes gerações, um movimento incessante de indagação e questionamentos que possibilita uma trajetória de descobertas e auto-conhecimento.
Se a matriz desta literatura que problematiza as genealogias femininas se dá entre as mães e as filhas, irmãs, ou avós e netas, esse modelo depois se expande e, além dos laços da ancestralidade, as genealogias vão se estabelecer através das amigas, das mulheres que dialogam com mulheres de outras épocas, entre escritoras contemporâneas e seus modelos canônicos, apenas para nomear alguns exemplos de como esta matriz primeira se desdobra em outras redes e relações significativas na vida das mulheres.
A necessidade da construção ou, inclusive, da reconstrução de uma genealogia se dá quase sempre em momentos de crise na vida da protagonista. A construção real ou imaginária de uma genealogia familiar, feminina, permite que a protagonista, freqüentemente, viva um processo de auto-conhecimento que a leva a romper estruturas sociais, parentais, seja através de divórcios, separações familiares e abandon de velhas funções ou qualquer outro tipo de separação ou afastamento que se apresentam nesses momentos como inevitáveis.
A revisão dessa genealogia feminina tem, portanto, para a protagonista, a possibilidade da busca de respostas que ela elabora para si mesma num momento de crise, e do questionamento de seus papéis sociais e sexuais. Como se ela escolhesse ou pudesse escolher, no momento da crise, com quem quer se parecer, às vezes identificando-se com determinados modelos familiares, às vezes rejeitando determinadas heranças que pensa não ter validade para si e sua descendência, justificadas pelos laços de ancestralidade.
Podemos considerar este o sentido central da genealogia, tal como a vemos nas narrativas de autoria feminina contemporânea, o de que há uma tradição feminina, herdada pelas mulheres através de experiências comuns e rituais próprios e específicos. Esses rituais quase sempre têm a ver com as modificações e crescimento do corpo e com a construção de uma identidade sexual. Os rituais que envolvem a ocorrência da primeira menstruação, da perda da virgindade, da gravidez, da história dos partos, da menopausa, etc., se tornam pontuais na construção da história de uma herança feminina. Se, por um lado, às mulheres restou muito pouco para herdar uma das outras, já que não herdam nem um patrimônio material e nem uma tradição literária, como já assinalou Virginia Woolf (em seu livro “Um teto todo seu”), não podemos deixar de afirmar que o resgate destes rituais, de um ponto de vista que critica padrões impostos de feminilidade, se faz necessário na reconstrução de uma linhagem e de uma experiência de semelhança.
Estas experiências entre as mulheres, serão, sem dúvidas, entre elas, muito diferentes das que acontecem entre os meninos e seus pais e avós, de quem eles têm, cheios de orgulho e vaidade, o que herdar e o que fazer com a herança, através de um patrimônio, um nome ou de uma tradição literária. O que quer dizer que a expressão de um desejo, como o da construção de uma genealogia feminina no imaginário literário contemporâneo refere-se á necessidade imperiosa que as mulheres têm de tentar saber quem são e o que querem.
Na atualidade, a literatura de autoria feminina prioriza o universo dos afetos femininos, criando uma tradição diferente da que até pouco tempo estava destinada aos personagens femininos tanto de autoria feminina como masculina.
Os romances e contos que tratam das genealogias femininas, em especial os que tratam do tema da maternidade, aparecem num primeiro momento, especialmente nos anos 50 e 60, como denúncia das dificuldades e frustrações históricas herdadas pelas filhas de suas mães e assim, sucessivamente, num movimento espiral, ao contrário. As mães e filhas, nestes romances, são inimigas, opõem-se e, para as filhas, as responsáveis pela repressão ou pelo sentimento de desvalor das filhas seriam as mães que, aliadas à ideologia patriarcal desqualificaria sumariamente as mulheres.
A literatura de autoria feminina escrita neste primeiro momento e, que também é tema recorrente em diferentes épocas, denominou-se de matrofobia e consistia, nestas narrativas, numa representação de filhas mulheres que rejeitavam veementemente suas mães como modelos identitários.
No Brasil, alguns contos de Tânia Faillace, nos anos 70 e alguns romances de Lya Luft, mesmo que sejam dos anos 80, são ainda representativos desta tendência que relata uma total incomunicabilidade entre mães e filhas, em que esta relação é desastrosa para as duas e é libertadora quando o vínculo se desfaz ou arrefece. Esgotado este primeiro momento, em que a revolta ou a raiva, as frustrações, os sentimentos de impotência e desvalorização são expressados pelas personagens das filhas em relação a suas mães, a literatura de autoria feminina toma outros rumos no que se refere ao tema das genealogias e à representação do par mãe e filha.
As mães e filhas que aparecem protagonizadas na literatura de autoria feminina atualizam os temas e conflitos presentes na vida das mulheres contemporâneas, que, por sua vez, repetem e reproduzem conflitos que, historicamente, se fazem presentes na vida das mulheres. E, atualizam também, a necessidade da construção de uma genealogia feminina que sirva de modelo e exemplo, em que as mulheres se sintam legitimadas em seus desejos, dúvidas e questionamentos.
Esses são apenas alguns trechos do precioso artigo escrito por Leila Almeida sobre os romances de maternidade e, em especial, sobre o livro As Mulheres de Tijucopapo de Marilene Felinto que pertence a esse gênero. Para ler o ensaio na íntegra acesse este link.
Nicole,
ResponderExcluiradorei a sua mensagem e adorei o blog, parace que o nosso cânone é o mesmo, me senti em casa vendo as fotos destas escritoras, parabéns pelo blog e esteja certa de que também voltarei muitas vezes para visitá-la, receba o meu abraço afetuoso,
Lélia Almeida.
Que bom saber que o útero vazio está se transformando em uma sala de encontro para mulheres que compartilham "o mesmo cânone" :)A intenção era essa, desde o começo.
ResponderExcluirEspero que os nossos encontros tornem os nossos úteros vazios (de bebês), cheios de reflexão, inspiração e coragem para explorarmos nosso potencial por completo e não pela metade, como tem acontecido como tantas de nós.
A coluna à sua direita é para nos lembrar que isso é possível, já que foi possível para todas essas mulheres, apesar de toda a adversidade que enfrentaram e até meus dos finais trágicos. As obras delas permanecem, falam por sim, e esperam para ser entoadas por nós.
Um abraço apertado e seja sempre muito bem-vinda.
Nicole Rodrigues