Já faz algum tempo que venho tentando escrever sobre a maternidade à força, resultado de um estupro. Primeiro imposta pelo estuprador e depois por quem não instrui ou permite que a criança, adolescente ou mulher adulta interrompa aquela gravidez que está longe de ser apenas "indesejada".
Muitas vezes as vítimas são tão jovens que não sabem que estão grávidas até a barriga ficar enorme, as pessoas mais próximas começarem a fazer perguntas e, com sorte, alguém explicar o quê e porquê. Conscientes ou não do que a mudança sofrida por seus corpos representa o fato é que elas só se dão conta da mudança imposta em suas vidas depois de verem o bebê berrar ao sair de dentro delas.
A COR PÚRPURA
Muitas chegarm ao estágio final da gravidez porque não sabem o que é um aborto, enquanto outras não recebem permissão dos pais, do governo, nem de deus – é o que ouvem – para fazê-lo e são obrigadas a se tornarem mães sem terem tido a chance de escolher absolutamente nada: nem quando, nem como, e muito menos, com quem elas gostariam de ter um filho. Se é que elas gostariam de ter um filho, o que, a essa altura, parece não fazer a menor diferença, assim como obviamente se quer passou pela cabeça dos monstros que cruzaram e mudaram seus caminhos para sempre.
Na minha primeira tentativa eu havia chegado até aqui. Mas tudo o que escrevi me pareceu simples e indolor demais para servir de material para uma reflexão realista e contundente sobre esse assunto. Talvez tenha sido assim porque eu, muito provavelmente por nada mais do que sorte, não fui vítima dessa atrocidade, e me faltam palavras para descrever as terríveis sensações e sentimentos que teriam sido despertados em mim caso a minha história fosse diferente.
Eu já havia deixado esse assunto de lado quando algo extraordinário aconteceu: eu resolvi criar um outro post e abri, muito aleatoriamente, um dos livros que separei para ler esse semestre, “A cor púrpura” de Alice Walker, então sentei e li o primeiro capítulo. E ao final, bastante emocionada, eu percebi que tudo o que poderia ser escrito sobre o horror que acompanha a experiência da maternidade à força já havia sido escrito.
OBS1: o trecho abaixo está em português europeu mas eu tenho certeza de que todas as diferenças poderão ser assimiladas e não comprometerão a leitura e compreensão do texto.
A COR PÚRPURA
" Não contes a ninguém se não à Deus. Era capaz de matar a tua mãe.
Meu Deus: Tenho catorze anos. Tenho sido sempre boa rapariga. Talvez possas fazer-me algum sinal que me faça perceber o que me está a acontecer. Na primavera passada, pouco depois de Lucious nascer, ouví-os brigar. Ele puxava-lhe por um braço e ela diz: É muito cedo, Afonso, inda não estou bem. Ele deixava-a em paz, mas na semana seguinte, volta a puxar-lhe pelo braço. E ela dizia: Não, não posso. Não vês que estou quase morta? E essas crianças todas.
Ela tinha ido a Macon para ser vista pela irmã doutora e fiquei a tomar conta dos miúdos. Ele não me disse nem uma palavra amável. Só: O que a tua mãe não quer fazer, vais tu fazer. E encostou-me aquela coisa à anca e começou a mexe-la e agarrou-me a mama e metia-me a coisa por baixo e, quando eu gritei, esganou-me e disse: O melhor é calares o bico e começares a te acostumar. Mas nunca me acostumei. E agora fico indisposta cada vez que tenho que fazer comida. A mãe anda ralada e passa a vida a olhar para mim, mas já está mais feliz porque ele a deixa em paz. Mas está muito doente e parece que não dura muito.
Meu Deus: A mãe morreu. Morreu a gritar e a praguejar. Gritava comigo. Praguejava para mim. Estou prenha. Não posso mexer-me bem. Ainda não chego do paço e a água já esta quente. Ainda não preparo a bandeja e a comida já ficou fria. Ainda não arranjo os miúdos para irem para a escola e já são horas de almoçar. Ele não dizia nada. Estava sentado à beira da cama. Pegava na mão dela e chorava e repetia: Não me deixes, não te vás embora. Quando foi do primeiro, ela perguntou: De quem é? Eu disse: De Deus. Não conheço mais nenhum homem e não sei que dizer. Quando comecei a ter dores de barriga e ela a mexer-se e saiu de lá aquele bebe que mordia a mão fiquei pasmada. Ninguém nos vinha ver. Ela estava pior e cada vez pior. Um dia perguntou-me: Onde está? Eu disse: Deus levou-o. Mas foi ele que o levou. Levou-o quando eu estava a dormir. E matou-o no bosque. E vai matar este agora se puder.
Meu Deus: Diz que está farto. Já não pode comigo. Diz que sou má e só aborreço. Tirou-me o outro bebê. Era um menino. Mas parece-me a mim que não o matou. Acho que o vendeu a um casal de Monticello. Tenho o peito cheio de leite e sai sempre e estou encharcada. Ele pergunta: Porque não tens um ar mais decente? Veste qualquer coisa. Que quer ele que eu vista? Não tenho nada. Oxalá encontre alguém para se casar. Olha muito para a minha irmã mais nova e ela tem medo. Mas eu digo: Eu tomo conta de ti. Se Deus me ajudar. "