sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A maternidade à força


Já faz algum tempo que venho tentando escrever sobre a maternidade à força, resultado de um estupro. Primeiro imposta pelo estuprador e depois por quem não instrui ou permite que a criança, adolescente ou mulher adulta interrompa aquela gravidez que está longe de ser apenas "indesejada".

Muitas vezes as vítimas são tão jovens que não sabem que estão grávidas até a barriga ficar enorme, as pessoas mais próximas começarem a fazer perguntas e, com sorte, alguém explicar o quê e porquê. Conscientes ou não do que a mudança sofrida por seus corpos representa o fato é que elas  só se dão conta da mudança imposta em suas vidas depois de verem o bebê berrar ao sair de dentro delas.

Muitas chegarm ao estágio final da gravidez porque não sabem o que é um aborto, enquanto outras não recebem permissão dos pais, do governo, nem de deus – é o que ouvem – para fazê-lo e são obrigadas a se tornarem mães sem terem tido a chance de escolher absolutamente nada: nem quando, nem como, e muito menos, com quem elas gostariam de ter um filho. Se é que elas gostariam de ter um filho, o que, a essa altura, parece não fazer a menor diferença, assim como obviamente se quer passou pela cabeça dos monstros que cruzaram e mudaram seus caminhos para sempre.

Na minha primeira tentativa eu havia chegado até aqui. Mas tudo o que escrevi me pareceu simples e indolor demais para servir de material para uma reflexão realista e contundente sobre esse assunto. Talvez tenha sido assim porque eu, muito provavelmente por nada mais do que sorte, não fui vítima dessa atrocidade, e me faltam palavras para descrever as terríveis sensações e sentimentos que teriam sido despertados em mim caso a minha história fosse diferente.

Eu já havia deixado esse assunto de lado quando algo extraordinário aconteceu: eu resolvi criar um outro post e abri, muito aleatoriamente, um dos livros que separei para ler esse semestre, “A cor púrpura” de Alice Walker, então sentei e li o primeiro capítulo. E ao final, bastante emocionada, eu percebi que tudo o que poderia ser escrito sobre o horror que acompanha a experiência da maternidade à força já havia sido escrito.

OBS1: o trecho abaixo está em português europeu mas eu tenho certeza de que todas as diferenças poderão ser assimiladas e não comprometerão a leitura e compreensão do texto.


 A COR PÚRPURA

" Não contes a ninguém se não à Deus. Era capaz de matar a tua mãe.

Meu Deus: Tenho catorze anos. Tenho sido sempre boa rapariga. Talvez possas fazer-me algum sinal que me faça perceber o que me está a acontecer. Na primavera passada, pouco depois de Lucious nascer, ouví-os brigar. Ele puxava-lhe por um braço e ela diz: É muito cedo, Afonso, inda não estou bem. Ele deixava-a em paz, mas na semana seguinte, volta a puxar-lhe pelo braço. E ela dizia: Não, não posso. Não vês que estou quase morta? E essas crianças todas.

Ela tinha ido a Macon para ser vista pela irmã doutora e fiquei a tomar conta dos miúdos. Ele não me disse nem uma palavra amável. Só: O que a tua mãe não quer fazer, vais tu fazer. E encostou-me aquela coisa à anca e começou a mexe-la e agarrou-me a mama e metia-me a coisa por baixo e, quando eu gritei, esganou-me e disse: O melhor é calares o bico e começares a te acostumar. Mas nunca me acostumei. E agora fico indisposta cada vez que tenho que fazer comida. A mãe anda ralada e passa a vida a olhar para mim, mas já está mais feliz porque ele a deixa em paz. Mas está muito doente e parece que não dura muito.

Meu Deus: A mãe morreu. Morreu a gritar e a praguejar. Gritava comigo. Praguejava para mim. Estou prenha. Não posso mexer-me bem. Ainda não chego do paço e a água já esta quente. Ainda não preparo a bandeja e a comida já ficou fria. Ainda não arranjo os miúdos para irem para a escola e já são horas de almoçar. Ele não dizia nada. Estava sentado à beira da cama. Pegava na mão dela e chorava e repetia: Não me deixes, não te vás embora. Quando foi do primeiro, ela perguntou: De quem é? Eu disse: De Deus. Não conheço mais nenhum homem e não sei que dizer. Quando comecei a ter dores de barriga e ela a mexer-se e saiu de lá aquele bebe que mordia a mão fiquei pasmada. Ninguém nos vinha ver. Ela estava pior e cada vez pior. Um dia perguntou-me: Onde está? Eu disse: Deus levou-o. Mas foi ele que o levou. Levou-o quando eu estava a dormir. E matou-o no bosque. E vai matar este agora se puder.

Meu Deus: Diz que está farto. Já não pode comigo. Diz que sou má e só aborreço. Tirou-me o outro bebê. Era um menino. Mas parece-me a mim que não o matou. Acho que o vendeu a um casal de Monticello. Tenho o peito cheio de leite e sai sempre e estou encharcada. Ele pergunta: Porque não tens um ar mais decente? Veste qualquer coisa. Que quer ele que eu vista? Não tenho nada. Oxalá encontre alguém para se casar. Olha muito para a minha irmã mais nova e ela tem medo. Mas eu digo: Eu tomo conta de ti. Se Deus me ajudar. "

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A imposição da maternidade via vínculos e vernáculos religiosos


A caminhada é longa, e nem sempre fácil. Já que entre um e outro texto esclarecedor sobre as questões da maternidade consciente e do processo de escolha de uma vida com ou sem filhos, eu trombo com um texto abominável como este, escrito pelo Albert Mohler e traduzido para o português do Brasil por Julio Severo.

Segundo ele,  a escolha deliberada de um lar sem filhos não é um direito, mas sim uma “rebelião moral com uma nova face”. E ele continua o disparate:

Os cristãos precisam reconhecer que essa rebelião contra a paternidade representa nada menos do que uma revolta absoluta contra o plano de Deus. A Bíblia mostra que um casamento sem filhos é grande maldição e que filhos são um presente divino. O salmista declarou: “Os filhos são herança do SENHOR, uma recompensa que ele dá. Como flechas nas mãos do guerreiro são os filhos nascidos na juventude. Como é feliz o homem que tem a sua aljava cheia deles! Não será humilhado quando enfrentar seus inimigos no tribunal”. (Salmo 127: 3-5 NVI)

Moralmente falando, a epidemia de lares sem filhos não tem nada a ver com os casais legalmente casados que desejam ter filhos, mas por algum motivo não têm a capacidade física de tê-los. A questão envolve os casais que têm plena capacidade de ter filhos, mas os rejeitam como intrusão em seu estilo de vida.

(...)

As Escrituras Sagradas nem mesmo imaginam casais que escolhem não ter filhos. A realidade chocante é que alguns cristãos estão engolindo esse estilo de vida e afirmam que um casamento sem filhos é uma opção legítima. O surgimento dos modernos anticoncepcionais tornou tecnologicamente possível tal opção. Mas o fato permanece que embora a revolução dos anticoncepcionais tenha possibilitado o casamento sem filhos, esse tipo de casamento é uma forma de rebelião contra o plano e ordem de Deus.



Eu não acredito que exista, mas se houver um deus, ele(a) certamente será, em toda a sua infinitamente citada benevolência, capaz de conceder a liberdade de escolha a todos os seus filhos. E se não houver um deus, a nossa responsabilidade será ainda maior. Porque o nosso destino passará a ser nosso, e apenas nosso. E caberá a cada um de nós combater a imposição da maternidade via vínculos e vernáculos religiosos para garantir que o nosso direito à escolha de um estilo de vida que nos faça feliz seja respeitado, principalmente quando se trata de algo que não afeta, nem prejudica, a vida de mais ninguém, como é o caso da escolha de uma mulher ou de um casal de não ter filhos.

Com ou sem deus, com ou sem filhos, permita-se ser feliz e permita que o outro seja feliz com as decisões que tomou, ainda que estas não sejam semelhantes às suas. Afinal de contas, o mundo não gira em torno da sua imagem e semelhança.

Nicole Rodrigues


Fontes: :
- Versão em português do texto do Albert Mohler:
http://juliosevero.blogspot.com/2006/03/escolha-deliberada-de-lares-sem-filhos.html
- Original em inglês: The Al Mohler Crosswalk Commentary — Deliberate Childlessness:Moral Rebellion With a New Face, June 7, 2005.
- imagem: http://www.stmarybelleville.org/Find.html






sábado, 13 de agosto de 2011

Meio sol amarelo


"You must never behave as if your life belongs to a man. Do you hear me?' Aunty Ifeka said. 'Your life belongs to you and you alone."  Chimamanda Ngozi Adichie (author of the book Half of a Yellow Sun)

"Você nunca deve agir como se a sua vida pertencesse a um homem. Você está me ouvindo?" A tia Ifeka disse: a sua vida pertence a você e a mais ninguém." Chimamanda Ngozi Adichie (autora do livro Meio sol amarelo)


Tradução: Nicole Rodrigues

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma em três mulheres dá à luz sem ajuda especializada


Um terço das mulheres do mundo dá à luz sem a ajuda de especialistas, aponta um relatório feito pela ONG britânica Save the Children e divulgado em abril deste ano.


O relatório estima que, se houvesse mais 350 mil parteiras no mundo, elas poderiam salvar a vida de 1 milhão de bebês anualmente.
Enquanto na Grã-Bretanha apenas 1% das crianças nasce sem que o parto seja assistido por especialistas, essa porcentagem sobe para 94 na Etiópia e para 76 em Bangladesh.


“Não deveria ser algo complicado: alguém que saiba como secar o bebê corretamente e a ajudá-lo a respirar pode fazer a diferença entre sua vida e morte”, diz Justin Forsyth, executivo-chefe da Save the Children.


A ONG cobra ações da ONU e de governos doadores a países subdesenvolvidos, pedindo que apoiem e financiem o treinamento de mais parteiras.

Segundo o relatório, a asfixia ao nascer é responsável por mais mortes de bebês do que a malária. “Com treinamento e equipamentos corretos, parteiras podem monitorar a frequência cardíaca do feto e identificar problemas durante o parto”, diz o texto.
No total, a Save the Children calcula em 48 milhões o número de mulheres que, anualmente, dão à luz sem auxílio adequado, aumentando os riscos de morte tanto da mãe quanto do recém-nascido.


O Brasil não é citado pelo relatório.
O Afeganistão é apontado como o pior país do mundo para se ter um bebê, segundo a ONG britânica. Ali, a taxa de mortalidade infantil é de 52 a cada mil nascimentos vivos (no Brasil, essa taxa é de 19,88), e 20% das crianças morrem antes de completar cinco anos.


Muitas dessas mortes são ocasionadas por práticas tribais, como colocar recém-nascidos no chão – o que traz risco de infecções – para espantar maus espíritos.


Mas, ao mesmo tempo, o correspondente da BBC em Cabul Paul Wood relata algumas pequenas melhorias no país, como o treinamento de 2,4 mil parteiras desde 2002 e o aumento no número de partos assistidos nas zonas rurais.
Um exemplo tanto dos flagelos quanto dos avanços do país é Rogul, 35, uma afegã da província de Cabul que disse à BBC que já passou por oito partos prematuros e perdeu todos os bebês.

Sua nona gravidez foi até o fim, mas a criança morreu um dia depois de nascer. Desde então, ela fez um curso para se tornar uma parteira e, agora, além de ter conseguido ter filhos, ensina práticas de saúde e higiene para outras afegãs.

Fontes:
Texto - BBC Brasil
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/04/110401_parteiras_pai.shtml
Imagem: http://www.historyforkids.org/learn/people/midwife.htm

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Padrões idealizados de maternidade



Engraçado como o universo às vezes conspira mesmo! Justo essa semana que estou escrevendo sobre os padrões idealizados de maternidade encontrei, completamente por acaso, lendo as notícias de hoje, esse texto sobre um estudo britânico que aponta que mães temem comparação com outras e mentem sobre criação dos filhos.
"As mães são pressionadas a se adequar a um ideal e tendem a omitir fatos sobre a criação de seus filhos quando conversam sobre o assunto com outras mães, segundo um levantamento feito por um site britânico.
Elas não revelam, por exemplo, a quantidade real de horas que as crianças passam em frente à TV ou o que os filhos realmente comem - revelou uma pesquisa britânica.
Estas omissões, ou mesmo "mentiras", também se aplicam a questões como quanto tempo passam com o parceiro, revelou o estudo, feito pelo site Netmums.A pesquisa contou com a participação de cinco mil pessoas.
O site britânico, que oferece suporte e aconselhamento sobre assuntos ligados à maternidade e à educação dos filhos, disse que com frequência mães sofrem pressão para se adequar a um ideal de perfeição, e que, por isso, acabam omitindo fatos sobre a educação dos filhos.
"As mães precisam ser mais honestas umas com as outras", disse Siobhan Freegard, uma das fundadoras do site Netmums, que possui 840 mil membros em vários pontos da Grã-Bretanha.
O site está pedindo que as pessoas sejam mais honestas ao descrever sua vida familiar para que as mães não se sintam forçadas a se enquadrar em padrões idealizados de maternidade.
Quase dois terços dos entrevistados disseram que tinham sido pouco francas ao descrever quão bem estavam lidando com as dificuldades da vida familiar e quase a metade omitiu preocupações financeiras.

Cerca de um quarto das mães admitiu não dizer a verdade sobre quantas horas de televisão as crianças assistem. E um quinto exagerou a quantidade de tempo dedicado a brincadeiras com as crianças.
Freegard citou o caso de uma mãe que, exausta, decidiu voltar para a cama durante o dia. Quando lhe perguntaram por que não havia atendido o telefone, ela disse que estava fazendo biscoitos e que suas mãos estavam cobertas de farinha.
Segundo os autores do estudo, outra situação comum em que mães são pouco francas é em conversas com outras mães no portão da escola.

Muitas mães não se sentem à vontade quando comparadas à outras e esse sentimento de inadequação seria resultado de pressão social: mais de nove entre dez entrevistadas admitiram comparar-se a outras mães.
O site está lançando uma campanha que incentiva os pais a aceitarem a realidade que vivem, ao invés de se sentirem mal por não poderem se adequar a um mito de perfeição.
"A imperfeição nos torna humanos", disse Freegard.
Uma das entrevistadas, identificada como Becky, disse que era difícil ser honesta: "Minha amiga estava me dizendo que limitava o acesso do filho ao Playstation e eu concordei, dizendo que meu filho também só jogava uma hora por dia, depois de fazer a lição de casa".

"Depois de dizer isso, me senti mal por não dizer a verdade", a mãe acrescentou.

"É muito difícil levantar a mão e admitir que você educa seus filhos diferentemente dos seus amigos".

O sociólogo e especialista em educação na família Frank Furedi disse que os pais sofrem "pressões profundas" da sociedade.

Ele acrescentou que, mesmo com as melhores intenções, relatórios como o estudo feito pelo site Netmums aumentam a pressão sobre os pais.

"Pais são sempre julgados, de uma forma ou de outra - incluindo por meio deste estudo. A solução real é deixar os país à vontade e publicar menos pesquisas".
A psicóloga Linda Papadopoulos aconselhou aos pais que deixem de comparar-se uns aos outros.
"Você está competindo com ninguém além de você mesmo - tudo o que você pode fazer é buscar o melhor para você e seu filho"."

Autor: Sean Coughlan
Fonte: BBC News

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Leitura obrigatória IV: "Ao sul do corpo".


Mais um dia de bons achados! Hoje encontrei o texto "A representação da maternidade no romance Adam Bede, de George Eliot" (que infelizmente não contém o nome da autora, mas aqui vai o link para o PDF, para quem quiser ler do começo ao fim) que, por sua vez, me alegrou ao citar o livro Ao Sul do Corpo da historiadora Mary Del Priore. Esse eu não conhecia, mas já tratei de inseri-lo na minha lista de leitura obrigatória.

A autora do texto refere-se ao livro da seguinte forma:
um estudo histórico sobre as condições das mulheres e, sobretudo, sobre a maternidade no Brasil Colonial, também atenta para a presença marcante da importância da maternidade na mentalidade histórica. Mary Del Priore demonstra a força do conceito da “santamãezinha”, ou seja, da mãe bondosa, dedicada e assexuada, construído na época colonial brasileira e que se enraizou no imaginário social, atravessando os séculos e chegando aos nossos dias:

Quatrocentos anos depois do início do projeto de normatização, as santasmãezinhas são personagens de novelas de televisão, são invocadas em párachoques de caminhão (“Mãe só tem uma”, “Mãe é mãe”), fecundam o adagiário e as expressões cotidianas (“Nossa Mãe”, “Mãe do céu”); (...) A maternidade extrapola, portanto, dados simplesmente biológicos; ela possui um intenso conteúdo sociológico, antropológico e uma visível presença na mentalidade histórica. (DEL PRIORE, 1993)



Fonte do texto: UNB - Revista Intecâmbio


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